O Papel da Mulher na História

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Ao longo da história, a figura da mulher teve diferentes representações. Nas sociedades primitivas, ela era reverenciada como a deusa mãe, associada à fertilidade e à natureza. Uma figura feminina central e matriarcal para a organização social, onde não havia muralhas nem uma cultura militarizada, mas tinha ênfase na paz e na preservação da comunidade.

Entretanto, ao longo do tempo, surge a figura do herói guerreiro, destacando o exemplo de Aquiles, semideus, deslocando o papel da deusa para uma posição secundária. O herói é associado à guerra e à dominação territorial, mudando os valores da sociedade para uma cultura de conquista e violência. Esse novo paradigma exclui as mulheres do espaço público, demonizando figuras femininas de poder e sabedoria, como Helena de Tróia, que possuía poder político, mas acabou sendo associada a ideias negativas. Com o surgimento do guerreiro, essa imagem feminina foi gradativamente obscurecida em favor do ideal do herói, que se destacava na cultura como símbolo de força e virtude, mas também de guerra e conquista.

Essa demonização das mulheres atinge seu auge durante a caça às bruxas, na Idade Média, um período sombrio em que mulheres simples, marginalizadas, parteiras, solteiras, “velhas” e conhecedoras da medicina popular, foram perseguidas e até mesmo executadas por sua sabedoria e conhecimento.

Curiosamente, esse período também viu o surgimento de instituições de medicina dominadas por homens, que contribuíram para a marginalização das práticas curativas tradicionais das mulheres.
Apesar dessas adversidades, há um ressurgimento do sagrado feminino na cultura contemporânea. Trazido pelo cristianismo, a figura de Maria, mãe de Jesus, resiste como um exemplo do sagrado feminino, mesmo em um mundo dominado por homens.

Hoje, as mulheres estão retomando seu protagonismo, lutando por igualdade de gênero e reconexão com a natureza, mostrando que têm (e sempre teve) um papel fundamental na sociedade e no cuidado com o planeta.

Abaixo, um resumo do curso nas palavras da brilhante professora Julia Myara, sobre essa construção e desconstrução do papel feminino nas civilizações, mostrando como é importante nos posicionarmos para atingir o bem comum.

DEUSAS, BRUXAS E FEITICEIRAS | Profa. Julia Myara

Aula 1 – A Grande Deusa e Suas Múltiplas Faces

Dentro da história da nossa cultura, a gente tem uma ideia de um Deus que é um Deus pai, criador e universal, como se a figura divina que protagoniza o sagrado da civilização fosse, desde o começo das eras, do começo dos tempos, uma figura de um pai criador.

Quando pensamos em Deus, temos uma imagem de um senhor que senta sob uma montanha, governando o mundo, criador do cosmos. Porém, é muito importante que a gente retorne a um período pré-histórico onde existia sociedades matriarcais, grupos sociais, onde a imagem de Deus era uma mulher. Uma grande figura divina que protagonizava nosso psiquismo e imaginário. E também o centro da nossa vida política e social. Sendo mulher e mãe, também sustentava ideias e parâmetros de um outro tipo de organização social.

Quando a gente pensa em historia, a nossa linha do tempo tem mais ou menos 5 mil anos. A gente vive dentro daquilo que se chama história das nações civilizadas e esse período histórico tem um marco específico: a criação das cidades-estado e textos escritos. Só que existe um grande período da vida humana na Terra que não é entendido como parte da história, um lugar marginal da história, chamado de pré-história, que é preciso retornar.

Há 40 mil anos, antes da era comum, ou era de Cristo, a humanidade já produzia diversos artefatos como estatuetas de culto à grande deusa, onde essas figuras traziam características importantes, como corpos femininos, representando símbolos de fertilidade, abundância, corpos grávidos. Essas figuras femininas eram figuras de culto à fertilidade. Grandes deusas associadas aos corpos femininos e fertilidade da terra.

Antes de Deus existir para os povos, a mulher era vista como deusa por várias civilizações de 40 mil anos que não foram reconhecidas. A partir de 10 mil anos antes da era comum, acontece um grande fenômeno climático, revolução neolítica, que vai acarretar no desenvolvimento da agricultura. Dentro do contexto das pequenas comunidades, o culto à uma deusa da fertilidade vai florescer, se desenvolver. A grande deusa vai se tornar dentro de uma estrutura social mais sólida, a deusa das estações do ano, fases da lua e do tempo. A deusa se torna também deusa dos calendários e ciclos naturais. Assim como os ciclos da terra geram vida, a figura da deusa ganha estatuto social elevado.

As comunidades agricultoras que surgiram ao sul da atual Turquia, contam outra forma de história perpetuada por milhares de anos por mulheres. Uma fonte arqueológica de uma grande compreensão sobre o que foi o matriarcado, o culto a uma divindade feminina, onde uma sociedade se organizava em torno dos valores pelo matriarcado.

A figura da deusa feminina era esculpida em marfim, pedra, e trazia traços característicos, evocando uma ideia de fertilidade corporal, fertilidade da terra, portanto uma mãe criadora, que alimenta. E, portanto, vai se consolidar dentro de uma cultura de agricultura.

As sociedades matriarcais são sociedades que trazem uma profunda marca de igualdade social, comunitária e a ideia de organismo e integração. Não só entre diferentes seres humanos, mas com a natureza, com o espaço natural, está muito presente.

O símbolo que essa entidade mãe evoca são símbolos que nos levam a pensar na ideia de ciclo, a economia cósmica e cíclica e que todo o planeta se comporta como um grande organismo. É uma ideia que se propaga, mas vai se perdendo no mundo moderno e contemporâneo. Onde nos vemos sendo apartadas.

A grande deusa na pré-história, ou a civilização da deusa é uma deusa dos ciclos, da fertilidade, com corpo de mulher, mas também é o corpo do próprio planeta. Ela traz a ideia de integração, de ciclo, de organismo, de organização comunitária em que toda forma de vida compõe um único todo universal.

A expressão artística da deusa, estatuetas, esculturas, pinturas na parede, tudo isso nos mostra que não existia nesses sítios arqueológicos uma ideia do herói guerreiro. Não existia uma ideia de cultura guerreira, militarizada. A própria ideia de guerra é estranha nesse contexto.

O que mobilizava as sociedades primitivas não era uma cultura de guerra. A cidade que ela fala é sem muralhas. O tema das muralhas aparece muito na era dos heróis. Não existe lanças, espadas ou nenhum treinamento militar reservado para a criação de uma elite guerreira. As pinturas nos mostram, principalmente, pessoas, mulheres, plantando, colhendo em suas comunidades.

O que mobilizava o centro comercial e o psiquismo da sociedade não era uma ideia de guerra. O fato de não existir muralhas, acampamento militar ou exaltação do herói, nos mostra que  não  existia uma cultura de guerra. As muralhas existem como mecanismo de defesa. Essa cidade sem muralhas denota uma cultura de paz primitiva.

A civilizado da deusa traz uma ideia fundamental que foi perdida pela sociedade: que somos parte de um todo e que uma vida saudável é uma vida vivida na coletividade, em respeito aos ciclos naturais. O matriarcado nos traz isso. Que o mundo que foi governado pela figura da grande deusa, mãe universal, nos revela outra economia cósmica, outro modo de vida, chamado de matriarcado, mas poderia ter outro nome, paz primitiva, comunitarismo primitivo, mas que talvez tenha algo a nos ensinar hoje em dia.

Aula 2 – As Vozes das Mulheres Gregas

Até hoje, quando queremos exaltar a figura de alguém, chamamos de herói. E, muitas vezes, nos esquecemos de qual é o contexto dessa figura de herói dentro da mitologia.

Quando olhamos para a antiguidade, observamos o desenvolvimento de outra cultura, outro modo de vida, chamado de heróica. Surge o herói guerreiro.

O herói guerreiro vai trazer uma concepção diferente de modo de vida, de organização social e política e de valores. É uma figura que ocupa um espaço psíquico bastante diferenciado da que a deusa ocupava.

O herói é o filho da deusa, um semideus, que cresce pra se tornar o seu esposo, o seu amante, um inimigo ou uma figura paterna. Que começa a governar sozinho. Como a grande deusa, a grande mãe se torna o grande criador e o grande pai.

Essa mediação entre a deusa e o deus vai ser dada pela figura do herói.

O herói é exaltado até hoje como símbolo de força, virtude, justiça, mas ele é fundamentalmente um ser de guerra. É uma figura criada desde a infância para ocupar um espaço de liderança militar. E nós temos vários exemplos de heróis na cultura grega.

Exemplo: Aquiles era um herói, semideus, filho de uma deusa com um homem mortal, criado para exercer a função guerreira. Ele escolhe morrer cedo para perpetuar seu nome na história.

O começo da obra Ilíada é a retratação dos afetos desse herói guerreiro. Um poema de guerra, de cólera, que é uma das narrativas mais importantes para a identidade grega e para todo o ocidente, que é maravilhoso, em vários sentidos, mas também terrível. Recheada de cenas de lanças e espadas, deuses na guerra, atirando pedras uns nos outros, é um poema bastante violento.

A ilíada tem como cidade principal desse objeto de guerra a cidade de Tróia, que é famosa por ter muralhas intransponíveis. Então, o símbolo da muralha que defende uma cidade é o símbolo de uma cultura que espera o ataque militar, que espera estar em guerra.

A figura militar que ganha fama é a figura do herói guerreiro. Ele que vai ser valorizado, vai ser colocado como o ápice da virtude humana.

Dentro desse contexto, o ápice da virtude humana deixa de ser uma ideia de comunitarismo, de nutrição, de fertilidade, de ciclos, para ser uma ideia de conquista, de exercício guerreiro, violência e expansão territorial. Cidades e culturas diferentes que entram em guerra para conquistar os recursos, umas das outras, e também para escravizar umas às outras.

O expansionismo territorial, a guerra, se consolida dentro desse momento da história da humanidade.

Normalmente, a terra é representada com uma figura feminina. Na narrativa sagrada, isso se repete muitas vezes. Quando surge a figura do herói, ele vai se afastando da figura terrestre, apartado da vida humana num contexto natural. Esse herói da guerra traz junto dessa bagagem mitológica e sagrada deuses que também são deuses da guerra, perpetuando e consolidando uma ideia de que somos seres separados, apartados e inimigos uns dos outros.

Escravização, expansão territorial e guerra são elementos que nascem conjuntamente dentro dessas narrativas sagradas.

Além de Aquiles representar muito bem o herói da história antiga, ele poderia ter tido duas opções: ter uma vida curta e morrer jovem para ser lembrado por todas as gerações ou viver uma vida longa e ter filhos e netos. Mas ele escolhe ser lembrado pra sempre do que ser pai e ter uma família. O renome, a fama, a glória, tudo isso se torna maior do que a vida longa, próspera e feliz.

Tem uma substituição evidente que vai ganhar na antiguidade outros contornos. A cidade de Atenas é o centro do mundo clássico na Grécia. É lá nesse momento, século III, IV, antes da era histórica, que se desenvolve as ideias de democracia, filosofia e teatro gregos. Toda essa cultura que o nosso mundo valoriza muito nasce nesse contexto. Porém, é importante perceber que é na mistura desse contexto ambíguo, a mesma cultura que é guerreira, escravocrata e expansionista, que gera tudo isso. “Não estou falando para escolher um lado da história, mas para entender que é ambíguo, múltiplo e uma discussão muito sofisticada.”

A democracia grega era muito específica. Hoje em dia, nem chamaria de democracia. Era uma democracia feita para homens, apenas. Nativos, estrangeiros e mulheres não tinham direitos, ou poucos direitos. Era uma cultura que fazia escravos. Pessoas escravizadas, mulheres, crianças e estrangeiros não tinham voz nesse ambiente de democracia grega.

Na filosofia era a mesma coisa, uma aristocracia bastante restrita composta apenas de homens.

A condição das mulheres na Atenas clássica era quase análoga à condição de escravizadas, não podiam sair de casa sem estar acompanhadas, tinham poucos direitos políticos, não tinham direito ao voto e eram entendidas como propriedade privada. Passando da posse materna para a do marido.

Historicamente, as mulheres gregas quase não tinham voz. Com exceção de poucas mulheres, como Safo. Platão fala que era uma musa, a décima musa. Segundo os poemas homéricos, as musas eram entidades divinas ou deusas. Safo tinha uma escola para mulheres, mas nada sobreviveu ao tempo. Perdeu-se muitas coisas, enquanto Homero escreveu textos enormes que temos inteiros até hoje.

A brancura era uma coisa curiosa, associada às figuras femininas, mas que eram assim não porque eram nobres, mas principalmente porque viviam em um espaço privado, de ambiente doméstico. Isso me lembrou o termo “sangue azul”, associado aos homens da nobreza, que não ficavam expostos ao sol, como os trabalhadores, mas eram cercados de direitos.

Helena de Tróia é uma das figuras mais famosas da mitologia grega, uma semi humana, lembrada como a mulher mais bela do mundo, quase uma deusa Afrodite encarnada. Apesar de ser considerada um lugar de mulher bela, ela destoava dessa mulher comum. Ela era, fundamentalmente, uma mulher muito diferente. Helena era rainha da cidade de Esparta, por direito próprio. Tinha irmãos e, ainda assim, era rainha. Helena tinha diversos pretendentes famosos, mas optou por casar com o irmão de Agamémnon, Menelau, um príncipe de Micenas. A irmã de Helena, Clitemnestra, já estava casada com o irmão mais velho de Menelau, Agamemnon.

Ao se casar com Helena, Menelau se torna rei de Esparta. A mulher se casa com o homem e vai morar com a família do homem. E, justamente ela, é a figura que concede autoridade política, e escolhe deixar seu marido para se casar com outro homem e se tornar princesa de Tróia. Então, Helena, na sua história, tem dois reinos, duas fidelidades, dois maridos, duas pátrias, duas culturas.  E, depois de mobilizar o mundo antigo de guerra, ela volta para Esparta e volta a ser rainha de Esparta. Não é à toa que ela é uma figura que acumulou muito poder político. Não à toa Helena vai ser associada a uma sedução feminina maligna, a uma vulgaridade da mulher, é associada à Lilith, um demônio feminino que aparece na mitologia judaica cristã.

Medeia é famosa até hoje por ter assasinado os próprios filhos. Ela aparece na mitologia apenas no texto de Eurípedes. No século V da era comum. A história de Medeia é muito mais antiga que Eurípedes. Medeia é uma grande sacerdotiza, senhora de todos os caminhos, senhora da magia, que tem trânsito livro por todas as esferas da existência, famosa pela prudência, pela arte de curar e pelos poderes mágicos. Ela é uma grande agente de cura, conhece as plantas e a magia natural. Era chamada de aquela que dá o bom conselho, era sábia, figura feminina de magia, poder e sabedoria. E, conforme sua história vai viajando no tempo, ela se transforma numa mulher histérica, louca, infanticida, assassina e uma mãe que vai matar os próprios filhos.

Tem algo que se perde. Ninguém sabe o nome da mãe dela, mas sempre são honrosas a figura da lua, a uma deusa lunar. Sua família é toda interessante. Sua tia era feiticeira, bruxa, que aparece na Odisseia. Circe é famosa por transformar os homens em porcos. Da clássica imagem de uma grande senhora das feras, transformando os homens em feras. Assim como sua sobrinha Medeia, por que Circe é repensada como uma figura demoníaca? A magia dessas divindades é a magia da revelação. Para quem lê a Odisseia, ela revela que o que estava no espírito deles era uma natureza bestial, bastante violenta. Era uma grande sábia, senhora da magia e sacerdotiza.

Resumindo, A figura do herói guerreiro confina as mulheres ao espaço privado, doméstico, e crescentemente transforma figuras femininas com espaço de poder em figuras demonizadas, perversas, assassinas e fúteis. Mulheres fortes que vão ser transformadas em figuras hostis e malignas.

Aula 3 – Contos de Fadas e Caça às Bruxas

Nos contos de fadas, as florestas são sempre perigosas, escuras, porque no interior da floresta tem uma bruxa má, uma mulher mais velha que vive sozinha. Essa figura da bruxa má é forjada justamente para encarnar os medos de um mundo forçosamente convertido ao Cristianismo, frente à uma figura feminina, anciã, mais velha, de poder e sabedoria, que vive na floresta, no ambiente natural.

Essa bruxa tem parte com os animais, tem amizade com os bichos da floresta, que podem ser terríveis, lobos, peçonhentos. É vinculada a um aspecto da natureza insubmissa, conhecedora da medicina das plantas, poções, curas, partos. É uma agente de cura natural. É uma mulher mais velha, não casada. Ela não vive sob o jugo de uma dominação masculina. Ela vive só na floresta. E por isso vai ser entendida como a grande vilã dos contos de fadas.

Nos contos de fadas tem também a figura da mãe muito doce, dedicada, que morre. Então, a figura da mãe boa é morta, que traz esse espaço maternal da mulher; está sempre morta nos contos de fadas, deixando uma criança que vai parar nas mãos de outra mulher, que por sua vez é má, madrasta.

A mãe má traz a ideia dessa mãe perdida, de outras mulheres, que são filhas de outros casamentos. A mãe má, a madrasta e as filhas, que são normalmente feias, versus a filha bela, que é boa e, possivelmente, perdida.

Os contos de fadas se moldam em torno da perpetuação de valores deturpados. Os bosques se tornam lugares perigosos onde você não pode transitar. Antes, esses espaços eram lugar de convívio entre camponeses, festejos e se tornaram espaços amaldiçoados. O comum entre mulheres se torna um convívio destruído. Cria competição e crescente afastamento e perversidade, além de acrescentar a ideia de que as pessoas belas e boas são membros da aristocracia. Esta é a estratégia de exclusão e dominação que está em jogo nos contos de fadas, o isolamento da figura feminina. Uma competição, um mal estar entre as mulheres. A mulher sábia, que tem vínculo com a floresta, que é mais velha, que não está sob o poder masculino, é uma bruxa. É sobre tudo isso que os contos de fadas evocam e com o objetivo de consolidar certo modo de vida e valores.

Se voltar na história, a bruxa má, as antigas mulheres, eram sábias, governantes, figuras de sabedoria, e femininas. Eessa figura vai sendo rebaixada com o tempo até se transformar nessa bruxa, ser terrível.

E o auge dessa apropriação do saber feminino, essa crescente desarticulação e isolamento, tem como expressão máxima um fenômeno que se deu no fim do período medieval e começo da modernidade, chamado de a caça às bruxas. Os tribunais de Inquisição foram fundamentais para consolidação dos estados modernos. A caça às bruxas desarticulou o mundo medieval. E a figura que sustentava o comunitarismo medieval, uma relação com a natureza, era essa mulher sábia, parteira, erveira, curandeira e contadora de histórias.

As mulheres campesinas e medievais eram muito subjugadas, mas ocupavam um espaço de prestígio social. E o tribunal de Inquisição vai perseguir exatamente as agentes de cura, as mulheres sábias e as contadoras de histórias desse mundo medieval, quando são torturadas e queimadas nas fogueiras.

O auge da perseguição às bruxas acompanha um segundo fenômeno histórico que é a consolidação das instituições de medicina. Então, é muito sintomático que, ao mesmo tempo que as instituições de medicina estejam se formando na  época moderna, onde apenas homens eram permitidos, todas as curandeiras, toda a sabedoria popular vinculada às comunidades, protagonizadas por mulheres, essas mulheres sejam todas perseguidas e assasinadas. Tem algo aí nessa estrutura que precisa destruir uma sabedoria tradicional em que, para ter êxito, perseguem as mulheres. É justamente nesse momento que as mulheres sábias, parteiras e curandeiras se tornam bruxas e encontram esse destino trágico dos tribunais da inquisição.

O mundo moderno é fundado a partir de um rastro que o tribunal da Inquisição deixa. Todo o anônimo da história, todo texto que a gente não sabe quem escreveu, cada pintura que não sabemos quem pintou, foi uma mulher que teve que se disfarçar de alguma forma para poder escrever, pintar, pensar e existir como um ser social, espiritual, artístico etc. E, apesar de todo o esforço de se apagar a mulher, as figuras femininas do imaginário religioso, ainda assim nós permanecemos. Claro que, muitas vezes, disfarçada. O exemplo clássico e interessante dentro do Cristianismo, é a figura de Maria, a mãe de Deus, deusa mãe. Ainda que humanizada e confinada, ela é a resistência do sagrado feminino dentro do mundo masculino e ocidental. Maria tem uma relação muito mais próxima com as causas comuns, quando as pessoas desistem de ter atenção do Criador e seu filho, e esperam que Maria os escute.

Outro exemplo curioso é o retorno da deusa para o nosso imaginário, que vem acompanhado de uma crescente consciência dos papéis de gênero, movimento feminista e uma crescente conquista dos espaços de poder, prestígio, das mulheres em nossas civilizações.

A grande deusa é o corpo feminino, mas também o corpo da terra. Corpo de mulher. Ela é o próprio planeta Terra.

Grandes deusas vinculadas à ideia de fertilidade e natureza fundamental, que dá origem a todas as coisas.

A consciência de gênero, feminismo e todas as áreas vinculadas à volta do feminismo ao âmbito cultural, não só evocam o protagonismo da mulher, mas valores até às origens matriarcais.

No mundo moderno criamos uma concepção de humanidade onde nós somos terríveis e violentos e nosso lugar no mundo é um lugar de domínio. Que devemos dominar sobre os animais, sobre a natureza e a natureza está aí para ser explorada por nós. Esse modo de vida é bastante equivocado, mas também insustentável para a natureza e o planeta. A vida humana faz parte do todo, do cosmos, do ambiente natural. E não parece à toa que o retorno da “deusa”, a resistência, também venha acompanhado de uma profunda consciência ambiental e um resgate da vida de que somos um organismo.

É impossível o corpo todo viver saudável se um órgão estiver doente. Fazemos parte de um organismo, e o corpo da terra, da deusa, os ciclos, todos fazem parte desse equilibro, dessa nova ideia de humanidade e saúde que nós devemos resgatar. Nós temos um passado compartilhado e um destino compartilhado.

Fonte: Casa do Saber
Curso: DEUSAS, BRUXAS E FEITICEIRAS
Profa. Julia Myara

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